quarta-feira, 25 de julho de 2007

"SENHORES PASSAGEIROS. .."

Rubem Alves

Todos os avisos de segurança continuam a ser transmitidos pelas aeromoças como se nada tivesse acontecido. Mas elas sabem que tudo é inútil.

O RONCO de um avião me acordou. Era cedo ainda. Olhei através do vidro da janela do meu quarto e vi o escuro branco da névoa. Tentei ver que horas eram no meu relógio, através da neblina da catarata. Não consegui. De manhã meus olhos são nevoeiros. Apelei para o colírio.

Eram quase seis horas. Passou um outro avião. E mais outro. Isso é incomum, tantos aviões descendo em Viracopos.

"Senhores passageiros: dentro de alguns minutos aterrissaremos em Viracopos. Afivelem os cintos, mantenham o encosto dos seus assentos na posição vertical e verifiquem se suas mesinhas estão fechadas e travadas."

Dentro do avião é como sempre foi. Todas as aeromoças dizem a mesma coisa. Para que a aterrissagem seja tranqüila. Hoje, quando escrevo, é quarta-feira, dia 18 julho. Ontem, dia 17, foi o aniversário do meu filho.

Estávamos numa pizzaria alegres e leves, tomando chopp e comendo pão italiano com lingüiça calabresa.

Enquanto isso, aproximando- se do aeroporto de Congonhas, o airbus se preparava para aterrissar. A comissária de bordo havia feito os mesmos avisos, todos os passageiros estavam com seus cintos de segurança apertados, os encostos dos assentos estavam na posição vertical e as mesinhas estavam fechadas e travadas.

"De repente do riso fez-se o pranto, silencioso e branco como a bruma e das bocas unidas fez-se a espuma e das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente, não mais que de repente fez-se de triste o que se fez amante e de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante, de repente, não mais que de repente..." De repente, a morte.

Passa mais um avião sobre a minha casa. Havia uma canção de protesto na década dos anos setenta que dizia: "Business goes on as usual..." os negócios continuam como sempre foram. Os aviões continuam a passar: "business goes on as usual". Dentro dos aviões todos os avisos de segurança continuam a ser transmitidos pelas aeromoças como se nada tivesse acontecido.

Mas elas sabem que tudo é inútil. Todos têm medo. Tem medo a mãe que abraça seu filhinho adormecido. Ele é o único que não tem medo. Aquele executivo de terno preto, gravata e lap-top tentou se esquecer do medo na tela do seu computador. Não conseguiu. Desligou o dito, guardou, abriu a carteira e agora está olhando para a fotografia de sua filha de dois anos

As beatas repetem rezas sem sentido. Não são para Deus. Deus já as decorou faz milênios. Se não são para Deus, para quem serão as rezas? Para eles mesmos, os que rezam. A repetição de palavras sem sentido esconde o medo. Talvez o que reza com mais verdade seja aquele ateu: seus olhos estão fechados e seus lábios se movem imperceptivelmente.

Amanhã [hoje], dia 19, deverei ir a Belo Horizonte. Mas estou com medo. Não irei? Irei, com medo. Rezarei? Sei que as rezas são inúteis. Se as rezas valessem não haveria desastres de avião. Porque num avião todos rezam. Muitas pessoas no airbus estavam rezando. Irei. Não posso decepcionar as pessoas que estarão me esperando. Enquanto isso os homens que o povo elegeu democraticamente para cuidar da sua segurança, em Brasília, discutem as aventuras sexuais e fiscais do senhor Renan Calheiros.

São Paulo, quinta-feira, 19 de julho de 2007

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